Luiz Fernando Pondé
Dias atrás entrei na catedral de
Santiago do Chile. Minha mulher, discípula de Guimarães Rosa, para quem
"quanto mais religião melhor", adora todo e qualquer santo.
Eu, mais miserável nesse assunto,
apesar de não religioso, sou facilmente capturado pelo aspecto estético e
sublime de templos sagrados. Foi um prazer ver e ouvir aquela missa "en
chileno".
A catedral silenciosa, discreta e com
pouca luz, com sua altura gigantesca, nos ajudava a lembrar nosso lugar no mundo
--que não me venham os inteligentinhos fazer o blá-blá-blá da crítica à
religião, porque a conheço desde o jardim da infância.
Sentir-se "em seu justo lugar no
mundo" é parte clássica de toda boa espiritualidade, contra esse
narcisismo dos "direitos do Eu total" de hoje, essa coisa "ninja
brega".
Este "justo lugar no mundo"
é parte daquilo que o historiador das religiões Mircea Eliade chama de perceber
que não somos o "axis mundi" (o eixo do mundo). Toda verdadeira
espiritualidade deve nos ajudar a vivenciar este "descentramento" de
nosso próprio valor.
O mistério me encanta e me faz sentir
menos banal. A sensação da banalidade de tudo me esmaga continuamente. Sou um
peregrino da falta de sentido. Uma testemunha da noite escura da alma de San
Juan de la Cruz e Terrence Malick. Não levo a sério ateus militantes que ainda
acham que ateísmo é "evolução espiritual". Para mim, ateísmo é,
apenas, o modo mais óbvio de ser e um estágio elementar em filosofia.
Fiquei ateu com oito anos. Alguém
poderia dizer que com os anos me tornei um ateu encantado pelo
"personagem" Deus e pela possibilidade de existir o perdão no mundo,
justamente porque, no fundo, não o merecemos. Sou cego, mas pressinto o espaço
à minha volta.
O padre em sua homilia falava da
alegria da vida. O papa Francisco quando cá esteve tocou neste tema, falando da
"religião da alegria". Não se trata de autoajuda, como pode parecer
aos desinformados, mas da mais fina teologia moral cristã (e judaica também). O
que é essa alegria? Vejamos.
A vida é precária. A pobreza
(material, espiritual, psicológica) é como a gravidade, na hora em que
relaxamos, ela nos consome. É uma questão de tempo. Nosso caminho é "para
baixo". Não é à toa que tomamos antidepressivos o tempo todo, cada um se
vira como pode. A solidariedade na melancolia devia nos unir a todos. O que não
perdoo na autoajuda é que ela mente para nosso justo desespero dizendo que ele
é mera questão de incompetência.
É aqui que começa a consistência da
teologia da alegria a qual se refere o papa Francisco: temos todas as razões
"materiais" do mundo para sermos tristes, o milagre é não sermos
tristes todo o tempo.
Confiar na vida é quase impossível. A
fé na vida é um mistério e um dom. Muito mais caro do que a inteligência e a
cultura --não as desprezo, porque inclusive elas são quase tudo que tenho.
Este
é o sentido de fé como "estar acompanhando" em sua encíclica "A
Luz da Fé".
A alegria da qual falava o padre
chileno e o papa Francisco é a "alegria teologal", aquela que nasce
das três virtudes teologais básicas: a esperança, a fé e a caridade (o amor).
Ter esperança, crer na vida e amar
são experiências que separam a infância espiritual da maturidade d'alma. O
desespero é o caminho mais curto entre dois momentos na vida. A esperança é que
é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é. Por isso, toda literatura
espiritual séria começa pelo vale das sombras.
Dizer que uma virtude é teologal é
dizer que ela é fruto da graça de Deus, não uma dedução a partir dos fatos do
mundo. Dos fatos, apenas deduzimos o desespero. Mas, por isso mesmo, esta
alegria, quando nos visita, tem o hálito divino, por sua própria quase total
impossibilidade de ser, para quem reconhece o vale das sombras à nossa volta.
Na mística, esta alegria pode nos levar às lágrimas. Este é o conhecido
"dom das lágrimas", marca de quem vê a beleza do mundo em meio ao véu
absoluto do desespero.
Nada a ver com religião como muleta,
mas sim com uma espiritualidade de quem caminha só, eternamente, entre sombras.
Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2013.
Ouve-me, ó Deus, quando faço a minha queixa; protege a minha vida do inimigo ameaçador.
ResponderExcluirSalmo 64